Por Marcus Orione

Há livros que já nascem destinados a se consagrarem como únicos e eternos na história da literatura de determinada área do conhecimento. São poucos e devem ser lidos com a atenção e o cuidado que merecem. Operação Lava Jato e luta de classes, de Pablo Biondi, é um desses raros livros. As razões são tantas que não conseguirei esgotá-las aqui.

Páginas e páginas já foram gastas com a Lava Jato. Muitas de conservadores. Outras tantas de autores que se pretendem progressistas. No entanto, na minha apreciação, nenhuma delas, apesar de algumas se autoproclamarem, marxista. O autor diz que irá fazer uma leitura utilizando o método proposto por Marx e realmente entrega, de modo brilhante, aquilo que promete.

Mostra como a forma social de produção é a única maneira pela qual pode cumprir a promessa. Estabelece as premissas a partir das quais realizará a análise. Faz, portanto, o que se espera de um marxista: coloca os pressupostos necessários à análise materialista histórico-dialética. De modo leve, mas, ao mesmo tempo, denso, explica com quais conceitos pretende operar. Poucos são os autores que vi fazer isso de maneira tão exímia; dentre eles, só para compreender a extensão do que estou falando, lembro de nomes da estatura de Jacob Gorender e de Louis Althusser.

Logo após, coloca as premissas políticas sobre as quais irá realizar a sua investigação. E, desse momento em diante, a obra cresce em envergadura, já que consegue realizar algo que não tenho visto ser feito a partir do referencial marxista: uma análise da forma política para a compreensão de um dos fenômenos mais importantes da recente história política brasileira, a Operação Lava Jato. Urge dizer aqui da dificuldade enfrentada pelo autor: teve que caminhar por estrada inóspita, já que não há qualquer análise minimamente confiável que trate da forma política no país. E esse talvez seja um dos outros grandes méritos da obra: onde ninguém trilhou, Pablo criou a trilha. Dizem que o caminho é que faz o caminhante, aqui foi diferente: o caminhante é quem fez o caminho. A partir de agora temos como nos amparar toda vez que precisemos fazer a análise política marxista de fenômenos típicos da realidade brasileira.

A seu tempo e de acordo com a sua realidade, alguns autores sofisticaram a análise política do marxismo, bastando ler clássicos como O que fazer de Lênin ou A revolução permanente de Trotsky. No nosso caso, atrevo-me a dizer que um fenômeno com repercussões importantes para a atual política brasileira não tinha uma obra da estatura desses clássicos do marxismo. Agora tem. Posto a seu tempo e lugar de reflexão, o livro que prefacio se destina a tomar, na literatura marxista brasileira, o status daquelas obras. Apesar de focar num fato político específico da realidade nacional, o modo como processa a investigação passa a se constituir em roteiro obrigatório de como se fazer uma análise seriamente comprometida com o marxismo. Não à toa a Lava Jato é desnudada à luz da luta de classes, vetor para qualquer leitura verdadeiramente científica do materialismo histórico-dialético.

Há que se destacar ainda a linguagem utilizada no texto. A leitura é fácil, sem perder a elegância estilística. A ironia é um recurso, a meu ver, fundamental a qualquer texto marxista, como se percebe de vários escritos do próprio Marx. Na medida certa e com muita inteligência, é muito habilmente utilizada pelo autor, mormente quando desmistifica o “marxismo” de alguns autores. Nesses momentos, é importante ver que a luta é contra os argumentos, nunca contra as pessoas. Desconstrói com cuidado aqueles que se pretendem marxistas, nunca tocando nas suas honras, mas na fragilidade de suas premissas. Isso somente é possível se o autor é intelectualmente sofisticado. Devo ressaltar que a densidade e integridade intelectuais (que refletem na sua prática política) são, no meu sentir, os maiores atributos de Pablo, a quem tive o prazer de orientar no mestrado, doutorado e pós-doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Como resultado de tudo que foi exposto, fica assentada a maior virtude de Operação Lava Jato e luta de classes: a teoria e a prática políticas servem para traçar uma clara divisória entre os que realmente são e os que não são marxistas. Muito pode-se debruçar sobre as obras de Marx, muito pode-se entender de seus textos, muito pode se escrever a respeito na perspectiva filosófica ou econômica. No entanto, nada desse muito serve quando aquele que se autoproclama marxista cede no campo da política a facilidades de escolhas que não são típicas da radicalidade dos textos de Marx (A autoproclamação ou o reconhecimento pífio de alguns intelectuais que nos cercam não são suficientes para nos tornar marxistas). A ação política, acompanhada de uma sólida base teórica no marxismo (é claro!), é efetivamente a prova de fogo para a constatação de quem é marxista. O resto, o resto é bobagem!


São Paulo, Verão de 2021

1 Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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